quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Cidade Morena

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Escrito por Heitor e Silvia Reali   
Fonte:  http://www.almanaquebrasil.com.br

Cidade cheia de graçaA porta de entrada da Amazônia brasileira guarda encantos que vão da religiosidade às festas populares; da diversidade de ingredientes e pratos a uma arquitetura que conta histórias dos tempos áureos da borracha. Não há sentido que passe incólume nesse mar de cheiros, cores, sons e sabores. 

Quem vai a Belém do Pará / Desde a hora em que sai / Não se esquece de lá, quer voltar
, entoava Luiz Gonzaga no arrasta-pé Tacacá, de 1956. Com razões de sobra. Em Belém a festança nasce junto com o dia, quando o sol e os barcos tocam a neblina sobre as águas ambarinas do Guamá O rio encosta no Mercado Ver-o-Peso, coração e palco da festa. Pouco a pouco vão chegando os coloridos barcos e seus porões grávidos de frutas, peixes e folhas de maniva (mandioca). Assim que atracam no ancoradouro do mercado, começa o bailado vaivém dos carregadores. Coisa igual não há.

Os índios que por ali viviam deram nomes sonoros aos peixes. Veja só: tucunaré, curimatã, acari, cururuca, tantos outros. Para as frutas, capricharam ainda mais: uxi, umari (que só existe no Pará); cutitiribá, pupunha, cupuaçu. E também açaí, que, de tão importante, ganhou ala exclusiva no mercado.

Tens o dom de seres muito / onde muitos não têm nada, cantam os músicos paraenses Roffé e Mundão. O açaí, de um roxo intenso, nativo das várzeas e dos igapós, é considerado o maná da Amazônia por sua abundância e seu valor nutritivo. E ainda tem o jambu. Valha-me Deus! Que sabor é este? A folha e a flor amarela e miúda dessa erva produzem um leve e gostoso tremorzinho na boca ao serem mastigadas.

Capítulo à parte são as cores, os formatos e perfumes das pimentas. Tem a murici, a murupi, a olho-de-peixe e a boa pimenta-de-cheiro. Quem é bamba na cozinha, como o chef Alex Atala, não conhece comida melhor que a da Amazônia. “Seus sabores são únicos e há tamanha diversidade que nem quem é de lá provou de tudo”, arrisca.


Reserva de fé
O Ver-o-Peso é tão importante para o belenense que só fecha num único dia do ano - o dia de honrar a Rainha do Pará, a Virgem de Nazaré. Por ser tão familiar, a santa ganhou apelidos carinhosos: Nazarezinha, Naza, Nazinha. A pequena imagem da Virgem é a mesma que foi encontrada em 1700 pelo caboclo Plácido de Souza num igarapé. Conta-se que ele levou a imagem para casa, mas, no dia seguinte, ela estava de volta. Depois de várias tentativas, o homem se rendeu, e o povo construiu uma capelinha à beira do igarapé.

Hoje a capela virou basílica, e a santa pouco sai de lá. Mas quando o faz, 2 milhões de pessoas vão com ela. É no segundo final de semana de outubro, durante os festejos do Círio de Nazaré. A imagem da virgem parte em sua berlinda florida, vai ao distrito de Icoaraci e volta de navio, com centenas de embarcações ao redor. O pernoite é na Catedral de Belém. No dia seguinte, volta para casa.

Nesses percursos, cada um demonstra sua fé como quer: enfeitando com flores e fitas os barcos, vestindo as crianças de anjos; soltando balões, fogos de artifícios, pétalas de rosas ou papel picado. Há também os que carregam sobre a cabeça réplicas de graças alcançadas; andam de joelhos ou puxam a corda do carro aonde vai a berlinda.

Na festa do Círio, artesãos expõem à venda brinquedos feitos de miriti, uma palmeira da região. A arte desses coloridos joguetes nasceu do pagamento de promessas em nome da Virgem de Nazaré. É comum ver barcos e casas equilibrados nas cabeças dos romeiros. Daí o uso do miriti, que, por ser levíssimo, é de grande valia nessas horas de aperto. As cópias das embarcações, tão bem reproduzidas, já se pareciam com brinquedos. E para ser brinquedo mesmo foi um zás-trás. A canoinha ganhou o caboclo com o remo marajoara, o feixe de cana e o cesto de açaí. Da bicharada da floresta saíram tucanos, araras, papagaios; e das águas, peixes e botos. Não faltam também bois-bumbás, casais dançando forró e coretos.

No final da festa, a santa que fez cada participante tocar o céu volta para seu nicho na basílica, que ali recebe o nome de Glória. E é mesmo uma glória. O Pará, acredite, é a maior reserva de fé do planeta.


Preste atenção
Note como na fala do povo da cidade se espicha o “em” ao final de determinadas palavras. É quase como o toque de um sino. Nada mais apropriado: Belém.


Fitas multicoloridas
Sendo a capital da “maior reserva de fé do planeta”, Belém tinha mesmo de se fazer representar. E não deixa por menos. Veja se não: a cidade nasceu no Forte do Presépio, construído em 1616 pelos portugueses. A partir do século 19, foi sendo embelezada com casarões, praças, bulevares e igrejas, graças à riqueza proporcionada pela exploração da borracha.

O forte abriga hoje um museu com a arte da cerâmica dos índios marajoaras. Ao lado dessa fortificação, a igreja de Santo Alexandre mantém o Museu de Arte Sacra, considerado um dos mais importantes do Brasil. De frente ao forte, a Casa das Onze Janelas - construída por rico comerciante do século 17 - é hoje o Museu de Arte Contemporânea, que também abriga salas dedicadas aos criativos fotógrafos paraenses. Todo esse conjunto e o entorno formam o Núcleo Cultural Feliz Lusitânia, homenagem ao povoado que deu origem a Belém.

Na praça desse centro histórico, uma mangueira, dentre as tantas e centenárias árvores da cidade, está lindamente revestida de fitas coloridas. É a árvore dos desejos. Quem se aproxima é convidado a escolher uma fita e escrever nela seu pedido. O vento se encarrega de levar as mensagens ao céu. No Pará cultua-se São Sebastião, que morreu flechado e atado a uma árvore. Longas fitas vermelhas são amarradas à imagem do santo. Também enfeitam os bois-bumbás dos festejos joaninos, os chapéus das marujas na Festa de São Benedito e os dos pierrôs de São Caetano de Odivelas. Estando lá, não deixe de escolher sua fita. E não se esqueça de pedir para que os santos continuem abençoando a cidade.


Não deixe de ver
Repare nas docas construídas no final século 19, cujos armazéns são de estrutura de ferro fabricada na Inglaterra. Restauradas no ano 2000, ganharam funções modernas: museu, centro cultural, espaços para lojas de artesanato, restaurantes, cafés, áreas de lazer. O entardecer chega às novas docas com um convite divino - assistir ao mais belo pôr-do-sol da cidade acariciado pela brisa do Rio Guamá.


Belém tem mais
Museu Paraense Emilio Goeldi
Criado em 1866, é um dos principais centros de pesquisa da região. Tem parque zoobotânico, aquário (o mais antigo do Brasil, de 1908) e exposição permanente de arqueologia e etimologia. Um mini-universo amazônico em plena cidade.

Espaço São José Liberto

Em funcionamento numa antiga cadeia pública, abriga o Polo Joalheiro, a Casa do Artesão, um museu dedicado às gemas paraenses, cerâmicas marajoaras e tapajônicas e artefatos indígenas.

Distrito de Icoaraci
Centro que reúne ateliês de ceramistas, onde se destacam a reprodução das peças confeccionadas pelos índios marajoaras e tapajônicos.

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